Leituras imperdíveis

domingo, 24 de outubro de 2010

Harriett - Caio Fernando de Abreu



A função do blog nem é de postar textos de outras pessoas, mas é que esse conto é tão lindo que eu queria compartilhar com vocês.

Talvez o mais triste e lindo que já li! Do livro "O ovo apunhalado"

"Chamava-se Harriett, mas não era loura. As pessoas sempre esperavam dela coisas como longas tranças, olhos azuis e voz mansa. Espantavam-se com os ombros largos, a cabeleira meio áspera, o rosto marcado e duro, os olhos esquecidos. Harriett não brincava com os outros quando a gente era criança. Harriet ficava sozinha o tempo todo. Mesmo assim, as pessoas gostavam dela.
Quase todo mundo foi na estação quando eles foram embora para a capital. Ela estava debruçada na janela, com os cabelos àsperos em torno das mãos salientes. Eu fiquei olhando para Harriett sem conseguir imaginá-la no meio dos edifícios e dos automóveis. Acho que senti pena - e acho que ela sentiu que eu sentia pena dela, porque de repente fez uma coisa completamente inesperada. Harriett desceu do trem e me deu um beijo no rosto. Um beijo duro e seco. Qualquer coisa como uma vergonha de gostar.
Essa foi a primeira vez que eu vi os pés dela. Estavam descalços e um pouco sujos. Os pés dela eram os pés que a gente esperava de uma Harriett. Pequenos e brancos, de unhas azuladas como de criança. Eu queria muito ficar olhando para seus pés porque achei que só tinha descoberto Harriett na hora dela ir embora. Mas o trem se foi. E ela não olhou pela janela.
Um tempo depois a gente viu uma fotografia dela numa revista, com um vestido de baile. Harriett era manequim na capital. Todo mundo falou e comprou a revista. Quase todos os dias a gente via a foto dela nos jornais. Harriett era famosa. A cidade adorava ela, mas ela nunca escreveu uma carta pra ninguém.
Muito tempo depois, eu a vi outra vez. Eu estava trabalhando num jornal e tinha que fazer uma entrevista com ela. Harriett estava sozinha e não fiou feliz em me ver. Continuava grande e consumida e tinha nos olhos uma sombra cheia de dor. Fumava. Falei da cidade, das pessoas, das ruas - mas ela pareceu não lembrar. Contou-me de seus filmes, seus desfiles, suas viagens - contou tudo com uma voz lenta e rouca. Depois, sem que eu entendesse porque, mostrou-me uma coisa que ela tinha escrito. Uma coisa triste parecida com uma carta. Tinha um pedaço que nunca mais consegui esquecer, e que falava assim:


sabe que o meu gostar por você chegou a ser amor pois se eu me comovia vendo você pois se eu acordava no meio da noite só pra ver você dormindo meus deus como você me doía vezenquando eu vou ficar esperando você numa tarde cinzenta de inverno bem no meio duma praça então os meus braços não vão ser suficientes para abraçar você e a minha voz vai querer dizer tanta mas tanta coisa que eu vou ficar calada um tempo enorme só olhando você sem dizer nada só olhando e pensando meus deus ah meu deus como você me dói vezenquando

Quando terminei de ler, tinha vontade de chorar e fiquei uma porção de tempo olhando para os pés dela. E pensei que ela parecia ter escrito aquilo com os pés de criança, não com as mãos ossudas. Eu disse para Harriett que era lindo, mas ela me olhou com aquela cara dura que a gente não esperava de uma Harriett e disse que não adiantava nada ser lindo. Tive vontade de fazer alguma coisa por ela. Mas eu só tinha uma vaga na pensão ordinária e um número de telefone estragado. Eu não podia fazer nada. E se pudesse, ela também não deixaria. Fui embora com a impressão de que ela queria dizer alguma coisa.
Três dias depois a gente soube que ela tinha tomado um monte de comprimidos para dormir, cortou os pulsos e enfiou a cabeça no forno de fogão a gás. Foi muita gente no enterro e ficaram inventando histórias sujas e tristes. Mas ninguém soube. Ninguém soube nunca dos pés de Harriett. Só eu. Um desses invernos eu vou encontrar com ela no meio duma praça cinzenta e vou ficar uma porção de tempo sem dizer nada só olhando e pensando: que pena - que pena, Harriett, você não ter sido loura. Vezenquando, pelo menos."

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Um lamento...


A voz, agora muda
O sorriso transfigurado em seriedade
A dureza em que configuramos nosso coração por conta do medo
Medo de sofrer, medo da repetição, medo do medo
Lamento as dores que sufocantemente vão martelando e tilintando ferozmente a cada vez que tudo se finda, de novo.
Lamento pelo não vivido: sonhos não divididos, sorrisos não compartilhados, leveza e entrega não experienciada, descobertas, lugares e pessoas não conhecidas
Vida que passou sem ter sido, lamentavelmente.
Lamento toda frieza, toda relutância, todo orgulho, toda dúvida
Lamento toda a bolha de auto-proteção em que nos colocamos
Lamento a inacessibilidade, a vida fechada, a não entrega
Lamento minha lamentavelmente capacidade de sentir demais, o tempo todo
Lamento ser em tudo demasiada. Fato.